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Marcas em mim

Marcas de um tempo roubado. Dores de momentos não vividos. Desafios de um novo tempo. Tudo ressignificado e marcado na pele e no peito. Processos de dor que eternizaram seus significados e fizeram descoberta a mulher forte e doce que sempre esteve à espera de aflorar.

Veio de mãe forte, decidida, autossuficiente nas emoções e na vida. Mas a maternidade que tanto queria não vinha daí. Veio de pai fraco, desestabilizado, ausente, cheio de dificuldades com vínculos e vícios. Sem vontade nem plano, não se fez papel e ausentou à criação.

Nesse sistema divergente, a frágil menina encontrou tanta proteção, tanta fortaleza, que nem suas escolhas fazia… se expressar ela temia. Sua mãe dava o tom e a voz. Já com o pai, a vergonha dele, a fazia preferir a mentira. E quem julga? Lidar com a fantasia era mais fácil do que lidar com a ausência dele, que assim ela escondia. Criança, moldava a realidade na ilusão. Fugia da dor na imaginação. Não entendia, mas sentia o que fazia sentido ou o que poderia fazer.

Mas criança cresce. E com ela cresceu o medo, o controle e a possessão de uma mãe que achava, na arbitrariedade e na nulidade, que sonhar os sonhos da filha, discursar sobre o sucesso do ter e determinar clausura de corpo e mente era seu direito. De uso. E de fato. E quem arriscava dizer o contrário? Se até a menina crescida, que questionava seu trato, não podia pensar em causar decepção pra mãe, independente da questão.

Experimentou o que não escolheu, ouviu o que não entendeu, viveu o que não decidiu. E no período da clausura do físico, descobriu a liberdade da mente. O questionamento abateu a apatia. O impulso da individualidade foi mais forte que o medo.

Bateu asas, buscou o respeito, voou à distância da mãe, uma busca ao encontro de si. A criança que nunca se conheceu, foi atrás da mulher que queria se tornar.

Descoberta. Outra no papel de mãe. Ordem nas emoções. Início da cura do nunca sentido. Distante da sua origem, porém ainda ligada. Ferida aberta buscando cicatriz, mas sempre conectada. Sangue é laço. O que se tem é melhor do que o que não se tem. O modelo era falho, mas era o único modelo de uma relação que desconhecia, não compreendia, mas ainda desejava…

Do sufoco daquele amor ela fugiu mas, na tristeza da solidão que se viu, a menina ferida voltou. Afinal, colo de mãe é quente, ainda que barulhento. E na solidão do silêncio, ela escolheu o barulho.

Na mudança da descoberta que levou com ela, recebeu em troca um olhar de mãe para a mulher. A menininha, sem voz e sem vez não era mais uma menininha. Pra mãe, decepção. Pra filha, alívio e orgulho de outro olhar, outras escolhas e outra chance. Mas nem tudo muda. Essência é raiz. E olhar só para o outro causa auto cegueira. A mãe tentou, mas a relação pouco mudou. E tentativa não confere êxito. E nesse vai e vem de repetição de tempos já vividos, o barulho se torna ensurdecedor.

Num corriqueiro momento de ruído, um acontecimento inimaginável e sofrível, dá início à transformação. Sua dor pelo sofrimento da mãe. Sua culpa no equívoco do sentimento. Sua tristeza pelos juízes e seus julgamentos. A vida aprontou… Sua mãe, já doente, degenerou…. Mas ela, com todo o amor, se regenerou.

A mãe, no leito de repouso descansa o corpo. Nos equívocos da mente, resguarda o antigo controle. Nas memórias que hoje lhe fogem, se abriga da realidade que não mais distingue. E a menina escondida nesse passado que já não existia, se viu liberada de viver as escolhas que não fez, de fazer o que não sentia. Manteve o respeito e o sentimento pela mãe. E agora tinha também por ela. Pra ela. Mas o sentido agora era outro. Encontrar um sentido.

A sensação de tempo roubado, de pouca vida, cobrava uma urgência de si. A descoberta do seu verdadeiro eu, do que era o seu caminho, trouxe sua identidade reconhecida no espelho. Agora seu reflexo era ela. Era dela.

Agora ela apostaria na liberdade do ser, do escolher, para tomar posse do autêntico e recém encontrado reflexo e refazer o seu caminho, com seus próprios passos. Lembrou dos desenhos e das pinturas de criança. Adorava. A mente os manteve esquecidos, mas o coração os tinha resguardado. Os trabalhos manuais aliados à sensibilidade empática, a levaram à sua formação autodidata na sua livre e linda escolha.

Transformou culpa e crítica em aceitação do outro, em entendimento dos caminhos que a vida toma para nos colocar no nosso verdadeiro caminho.

Encontrou seu compasso para a jornada na expressão da história marcada na pele. Registrar, com dor, o lindo e único significado da lembrança que, assim, permanece viva. Coincidência? Não…. Preparo da vida, com coragem e bondade, marcando o corpo para transcender a alma.

Dentro de sua maior dor, encontrou sua maior beleza. Imersa na sufocação de amor, emergiu para registrar histórias no corpo. Hoje, sabe que a dor faz parte. Mas também sabe que na dor, tem arte. Que sensibilidade e excelência fazem parte. Hoje, ela tem pressa de vida. Tem calma na partida. Tem atenção na intensidade e exagero na felicidade. Sua forma de escolher ver o mundo, de enfrentar seus desafios, foi sua transformação. Seu dom, sua arte, é sua missão.